APROVEITE A GUERRA ENQUANTO PODE, PORQUE A PAZ SERÁ TERRÍVEL – A MOTIVAÇÃO E A RESISTÊNCIA DO SOLDADO ALEMÃO NO FINAL DA SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

No Brasil sempre existiu uma polêmica envolvendo a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) em solo italiano na Segunda Guerra Mundial e trata sobre seus principais adversários – os militares alemães.

Desde muito jovem escutei essas coisas aqui em Natal, principalmente quando estava na loja do meu pai, lá no tradicional bairro da Ribeira. Ficava ouvindo a conversa dos mais velhos, que de quando em vez rememoravam a participação do Brasil na guerra e o que não faltavam eram críticos a ida das nossas tropas a Itália. Eu ouvia coisas do tipo “– A FEB lutou com soldados alemães velhos e cansados”. Ou algo como “– As tropas alemãs que lutaram na Itália não tinham treinamento adequado e foi tudo muito fácil para os brasileiros”. Tinha também “– Os alemães que combateram a FEB eram pessoas que anteriormente não seriam aproveitadas nas tropas de Hitler, mas com a guerra chegando ao fim os líderes nazistas empurraram para frente de combate qualquer tipo de gente”. Depois descobri através de textos antigos que esse tipo de pensamento em relação a FEB, de uma maneira ou de outra, já vinha acontecendo desde o fima da Segunda Guerra Mundial.

Soldados Brasileiros da FEB treinando com morteiros – Colorizada por Ricardo Morais – @imagemepoesia

Talvez por haver escutado essas críticas, eu sempre me perguntei quem eram esses alemães que combateram a FEB?

Sei que existe muita informação sobre as unidades germânicas que enfrentaram os brasileiros na Itália, a maioria delas veteraníssimas nas várias frentes de combate que as forças de Hitler atuaram. Mas confesso que sempre quis saber algo mais sobre esses combatentes, mas por aqui esse tipo de informação é limitada.

Comboio de viaturas da FEB rodando pela Itália – Colorizada por Ricardo Morais – @imagemepoesia.

É verdade que no Brasil foi lançado o livro As duas faces da glória: a FEB vista pelos seus aliados e inimigos” (São Paulo. Ed. Planeta, 2015), do jornalista William Waack“. Esse livro, tido como polêmico na sua essência, até que trouxe alguns relatos e memórias de militares alemães que atuaram na Itália contra a FEB, mas ele não respondeu aquilo que mais desejava saber – Quais os motivos para as forças armadas da Alemanha Nazista a continuar lutando na Itália e em outros locais, quando a guerra já estava claramente perdida?

A Visão Alemã da “Ponte Longe Demais”

Recentemente eu tive a oportunidade de ler o interessante livro “It Never Snows in September” – The German View of Market-Garden and The Battle of Arnhem, September 1944” (“Nunca Neva em Setembro” – A visão alemã de Market Garden e a Batalha de Arnhem, setembro de 1944), de autoria do norte-americano Robert J. Kershaw.

Esse livro foca nas batalhas travadas no sul da Holanda, ou Países Baixos, entre os dias 17 a 25 de setembro de 1944, como parte da famosa Operação Market Garden, o maior lançamento de paraquedistas que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Não vou detalhar os fatos envolvendo essa operação, já bastante esmiuçado em livros, filmes, documentários e na internet, mas basicamente essa história se resume assim – Após os desembarques aliados no dia 6 de junho de 1944 na Normandia, França, as forças alemães recuaram e perderam a França e a Bélgica. No começo de setembro os Aliados estavam na fronteira da Holanda, com os alemães recuando e se nada fosse feito, logo depois entrariam na Alemanha. Foi quando o general inglês Bernard Law Montgomery decidiu realizar um grande ataque. A ideia básica seria o lançamento de 34.000 paraquedistas ingleses, norte-americanos e poloneses na Holanda, que deveriam conquistar nove pontes, sendo os alvos principais as pontes sobre os rios Waal e o Baixo Reno, nas cidades de Nimegen e Arnhem. Os paraquedistas deveriam lutar e manter as suas posições, enquanto uma grande quantidade de unidades blindadas e de infantaria Aliadas, com mais de 50.000 homens, partiriam da Bélgica. Após o encontro das duas forças, eles avançariam sobre a Alemanha.

Paraquedas abrem no alto enquanto ondas de paraquedistas pousam na Holanda durante operações do 1º Exército Aerotransportado Aliado. Setembro de 1944.

A questão é que os Aliados saltaram em uma região onde estavam acampadas divisões blindadas, de paraquedistas e tropas de infantaria do Exército Alemão e das temidas e fanáticas unidades SS.

Ao final de oito dias de combate mais de 17.000 militares das forças de Montgomery foram mortos, feridos, ou caíram prisioneiros dos alemães. Os blindados aliados não conseguiram se unir aos paraquedistas e estes, apesar de muito heroísmo, foram subjugados. No final das contas, o estrago foi tanto que Arnhem só seria libertada no final da guerra na Europa e, como sempre, quem mais sofreu foram os civis. Nos meses seguintes após os combates, o oeste da Holanda ficou sem fornecimento de alimentos e durante o inverno de 1945 morreram mais de 20.000 pessoas.

Operação Market Garden.

Os fatos ligados a história da Operação Market Garden são bem conhecidas no Brasil através do livro “Uma Ponte Longe Demais” (A Bridge Too Far), do inglês Cornelius Ryan e publicado em 1974. O resultado desse trabalho serviu de base para um filme homônimo rodado em 1977, que obteve um grande sucesso e foi dirigido pelo também inglês Richard Attenborough. Muitos outros materiais foram criados com foco nesse grande fracasso militar. Só que o livro de Robert J. Kershaw, lançado pela primeira vez em 1990, fez algo bem diferente dos demais, pois ele buscou uma perspectiva que contemplou as experiências dos soldados alemães comuns envolvidos nesses combates e no qual eles saíram vitoriosos.

Estávamos Preparados Para Continuar Lutando

Segundo Kershaw, os documentos alemães para este período são incompletos e por isso ele recorreu a relatos contemporâneos de testemunhas oculares e grande parte deste livro se preocupou com experiências individuais.

Hitler nos primeiros anos do Nazismo na Alemanha.

Na época de sua pesquisa ele teve a oportunidade de conversar com antigos combatentes do Exército Alemão (Wehrmacht), das tropas SS (Waffen SS) e da Força Aérea Alemã (Luftwaffe). Nessa última os principais entrevistados foram os sobreviventes das famosas Fallschirmjäger, os paraquedistas alemães. Além das entrevistas o autor teve o a diários pessoais e correspondências não publicadas para leitura. Mas o autor não deixou de ir aos arquivos na Holanda, Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica, Estados Unidos e outros locais, bem como percorreu as áreas dos combates na Holanda e conversou com os sobreviventes locais daqueles dias intensos e complicados.

No livro “It Never Snows in September”, Kershaw escreveu nas páginas 53 a 62 um texto intitulado “Beliefs and concerns” (Crenças e preocupações), onde o autor norte-americano basicamente respondeu ao meu questionamento. E muitas das respostas vieram dos próprios alemães que Kershaw entrevistou.

Como, por exemplo, o cabo mensageiro Alfred Ziegler, um jovem de 19 anos, que fazia parte da equipe antitanque da 9ª Divisão Panzer SS Hohenstaufen. Ziegler relembrou a atmosfera e a situação da sua unidade pouco antes de chegar à cidade belga de Mons (285 km de Arnhem), onde a unidade foi reorganizada como uma companhia de infantaria de resposta rápida na véspera da famosa Operação Market Garden:

“O moral estava bom, mas não tínhamos ilusões de que a guerra tinha acabado. A piada quando fomos enviados para Tamopol, na Rússia, era: “Estamos a caminho para escolher um bom quartel na Sibéria”. As coisas melhoraram com a invasão da Normandia, agora tínhamos mais probabilidade de acabar cortando lenha no Canadá! Um dos meus melhores amigos me disse em segredo: “Não banque o herói, a guerra está perdida”.

Já Wolfgang Dombrowski, outro membro da SS na Holanda em 1944, se colocou de maneira que o autor definiu como “filosófico, mas em um sentido prático”:

“Nós pensávamos que a guerra provavelmente acabaria logo. Mas você deve ter em mente que as classes de tropas tinham apenas 18 ou 19 anos. Nossos oficiais tinham 24 ou 29. Eles ainda eram jovens! As questões mais profundas da vida não nos preocupavam muito. Estávamos preparados para continuar lutando”.

Os reveses catastróficos sofridos pelos militares alemães em todas as frentes de combate no verão de 1944 serviram para ressaltar o principal fator que os manteve unidos até o fim: uma crescente consciência de que a Pátria estava agora em perigo. Este fator por si só provavelmente encorajou a vontade de resistir mais do que toda a propaganda nazista.

O Medo Universal Não Era a Morte

Kershaw apontou através de seus estudos e entrevista que o medo de perder a guerra raramente era expresso abertamente e certamente não era mencionado pelos oficiais e suboficiais aos soldados. Dúvidas sobre um final feliz teriam enfraquecido a resistência. E o único final feliz concebível naquela época era defender as fronteiras da pátria e negociar para preservar o status quo pré-guerra com a ajuda das novas “armas maravilhosas”, a V1 e a V2. Ninguém poderia imaginar as consequências de uma derrota total. Mesmo no meio do desastre do Bolsão de Falaise[1], na Normandia, um cabo assim escreveu para a sua esposa em 18 de agosto de 1944:

“Tivemos que recuar às pressas. O resto das unidades recuou sem disparar um tiro e nos fez ficar para trás para cobri-los… Eu me pergunto o que será de nós. O bolsão está quase fechado, e o inimigo já está em Rouen. Acho que nunca mais verei meu lar. Apesar de tudo, lutamos pela Alemanha e por nossos filhos, e não importa o que aconteça conosco. Estou finalmente esperando que um milagre aconteça e que eu veja meu lar novamente”.

Para Kershaw, de qualquer forma, o soldado alemão nas frentes de combates nunca encontrou a paz e a solidão necessárias para pensar no curso da guerra. Sua preocupação imediata era a mera sobrevivência. O medo universal não era a morte, mas algo pior: que ninguém sairia da guerra com vida. Ninguém queria morrer heroicamente ou sofrer mutilação naquela altura do campeonato. Para a maioria, e particularmente para os veteranos, o período de maior ansiedade era a espera nas áreas de reunião antes de partir para a troca de tiros na linha de frente. Os substitutos novatos demonstraram uma ignorância feliz, até receberem o duvidoso privilégio da experiência de combate.

Portanto, a sobrevivência era uma questão mais importante na frente do que a política e o partido. De vez em quando havia reclamações sobre os “chefões do partido” em casa. Quando as cartas das suas famílias mencionavam os escândalos de membros importantes do partido, a resposta geralmente era: “Espere até chegarmos em casa e acertaremos as contas…”

O interessante é que Kershaw aponta que tais declarações raramente eram levadas a sério pelos oficiais superiores que censuravam as correspondências, dando pouca atenção a tais manifestações. Afinal, reclamar era prerrogativa do soldado na frente de batalha. Desabafar fez mais bem do que mal. O mais significativo foi que as reclamações sobre os líderes do partido nunca chegaram a Hitler; talvez ainda houvesse uma medida de confiança ou fé cega nele. Um comandante de batalhão ecoou as opiniões de seus homens quando escreveu depois da guerra:

“Não sabíamos quão tensa ou desesperadora era a situação no front, nem sabíamos nada sobre o impacto negativo que as diferenças entre Hitler e seus generais tiveram nas decisões operacionais”.

Poder de Combate

Robert J. Kershaw comentou que era inevitável que o súbito afluxo de pessoal clinicamente inapto e mal treinado causasse uma séria deterioração no moral das forças alemãs estacionadas na Holanda. Mas os soldados ainda dependiam de transmissões de rádio, jornais de primeira linha, correspondências e ordens para acompanhar a situação geral.

O que um soldado viu em primeira mão teve um impacto profundo, e a retirada da França abriu os olhos de muitos, mas não era esperada uma oposição em massa à guerra. A disciplina estava profundamente enraizada, e os soldados alemães apreciavam as medidas organizacionais e de controle instituídas nos vários destacamentos de recepção. Os horrores da retirada prenunciaram um colapso potencial que poucos poderiam imaginar ou mesmo pensar inconscientemente.

De fato, o “sistema” os manteve juntos. A formação de uma linha defensiva no início de setembro ao longo do Canal Albert, na Holanda, foi um excelente exemplo da resiliência do Estado-Maior Alemão em retardar a derrota total.

Kershaw aponta que o autor Martin van Creveld[2] escreveu trabalhos sugerindo que o Exército Alemão infligiu mais baixas per capita em seus inimigos do que qualquer um de seus adversários Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Isto foi alcançado através do desenvolvimento de uma infraestrutura militar dedicada quase exclusivamente às operações. Construído para atender às necessidades operacionais, sociais e psicológicas do combatente; produziu por unidade uma maior concentração de “poder de combate” do que qualquer outro Exército Aliado.

O Estado-Maior Alemão desempenhou um papel fundamental em tudo isso. O planejamento inteligente e preciso do quartel-general, que continuou a funcionar apesar da aniquilação das unidades de combate, desempenhou um papel fundamental na restauração da ordem entre os comandantes da frente, sobrecarregados por crises locais. Os soldados alemães ansiavam por ordem e lutavam melhor quando estavam organizados.

Nos níveis mais baixos, os laços de camaradagem também mantinham a coesão. Dificuldades compartilhadas produziram amizades próximas, que significavam mais do que identificação com Hitler e o Terceiro Reich quando se tratava de lutar e morrer. O exército levou esses laços em consideração ao estruturar o sistema de treinamento que o apoiaria para o serviço ativo. As divisões eram responsáveis ​​por treinar seus próprios recrutas em batalhões de substituição, os Feldersatz, cujas três companhias tinham como objetivo alimentar os três regimentos que formavam a divisão. Após a conclusão do treinamento, os recrutas eram designados para os “Batalhões em marcha”, que eram unidades inteiras que podiam ser enviadas como reforços em qualquer estágio da jornada até o front, se a situação local exigisse.

Esse era o sistema adotado pelos centros de recepção localizados atrás da linha de frente no sul da Holanda. Lá os “Batalhões em marcha” eram frequentemente empregados por necessidade, antes que tivessem a chance de formar uma identidade como unidade. Uma das maneiras de promover a identidade era nomear a unidade em homenagem ao seu oficial em comando. Por exemplo, durante as lutas dos alemães contra os Aliados na Operação Market Garden, os Kampfgruppen (Grupos de combate) “Walther”[3], “Chill”, “Möller” e outros, seguiram esse padrão.

O quartel-general conhecia a personalidade dos oficiais em questão e, com o tempo, os soldados podiam sentir certo grau de associação com seus comandantes. O sistema era preferível à atribuição de um número as unidades, um número que era antes de tudo impessoal.

Verrückte Helmuts

O contato pessoal com as famílias em casa também teve impacto no moral do combatente na frente de batalha. Apesar das restrições, as cartas que chegavam de casa não correspondiam necessariamente aos boletins oficiais publicados. Isso podia ser perturbador para alguns. Entretanto, a principal preocupação dos soldados na frente de batalha era a segurança de suas famílias, expostas a terrível e destruidora campanha de bombardeios dos Aliados.

Kershaw descobriu o caso da Senhora Doris Dantscher, que tinha 71 anos quando sofreu os efeitos dos bombardeios em Munique. A carta escrita aos filhos em 20 de julho de 1944 é típica das centenas recebidas pelas tropas no front. Ela tinha acabado de ser evacuada para a cidade de Münnerstadt, na Baixa Francónia.

“Desde quinta-feira, não temos mais um teto sobre nossas cabeças; perdemos tudo. Tudo aconteceu tão rápido que não conseguimos salvar nada; Tudo o que resta é o que estava no porão, que sobreviveu… a casa está completamente queimada… O pai conseguiu limpar a entrada do porão nos fundos com uma pá. É impossível entrar pela rua, você tem que descer a Zentnerstraße e ar pelo jardim para entrar… Johanna me tirou desse inferno na segunda-feira e me levou para Münnerstadt. O pai ainda está em Munique, e estou muito preocupada porque ele tem que viver e dormir no porão… Espero que ele ainda esteja vivo, porque nos dias 18 e 19 houve ataques intensos em Munique… Ainda não consigo me acostumar com o fato de que não temos mais um lar. Em nosso infortúnio, temos a sorte de ter a tia Johanna, com quem conseguimos nos recuperar. Quem diria que quando você saiu da casa dos seus pais pela última vez, seria para sempre. Tudo o que foi querido para nós teve que ser abandonada… Não pudemos nos mover por cinco dias. Não havia água, nem eletricidade, nem gás. Foi um alívio poder lavar roupa em Münnerstadt.

Essas cartas, que muitas vezes chegavam atrasadas, tinham um efeito particularmente negativo no moral dos envolvidos. Às vezes, essas notícias nem eram comunicadas. Quando isso acontecia, oficiais superiores tentavam amenizar o golpe por meio de camaradas que eram amigos próximos da pessoa em questão.

Mas os soldados alemães estavam constantemente preocupados com suas famílias e por vezes surgiam reclamações como esta – “É uma inutilidade de lutar, se nossas famílias estão sendo mortas em casa“. Ou também – “Por que ouvir discursos sobre armas maravilhosas quando a Luftwaffe não pode mais abater bombardeiros inimigos!

Kershaw aponta que as notícias das atrocidades perpetradas pelo Exército Vermelho na Prússia Oriental e as tragédias contínuas causadas pela ofensiva de bombardeio criaram os chamados “Verrückte Helmuts” (Helmuts Loucos). Um veterano paraquedista relatou que “havia um em cada pelotão“. Homens que perderam tudo — famílias, namoradas, casas — ficaram despersonalizados pelo desespero. Eles não tinham mais nada pelo que viver, exceto talvez lutar e vender suas vidas para se vingar. Esses indivíduos imprevisíveis se tornaram adversários mortais para o inimigo, apesar de seu treinamento inadequado, mas sua imprudência fanática tinha que ser constantemente monitorada por seus comandantes. 

Queimado Suas Pontes

Todos esses fatores tiveram um impacto coletivo na qualidade da luta na frente. Talvez a principal emoção que motivou a tenacidade alemã nessa fase da guerra, e que muitas vezes não é reconhecida, foi o medo de que logo estariam lutando em suas próprias ruas e praças, juntamente com o desejo de proteger sua terra natal e suas famílias contra os mesmos crimes que foram perpetrados pelos exércitos alemães em suas próprias campanhas até então.

Seria incorreto dizer que isso era um sentimento de culpa sobre a guerra, já que a extensão total da matança sistemática de judeus e “indesejáveis” estava apenas gradualmente começando a se tornar pública. A maioria dos alemães, como eles próprios afirmam, desconhecia as atrocidades perpetradas no submundo istrado pelo braço político da SS. Mas havia evidências visíveis o suficiente para deixar qualquer um desconfortável.

Isso produziu uma resignação fatalista: uma consciência de que o Reich havia “Queimado suas pontes[4] e que a única saída era continuar lutando. Na época, isso não estava claro para o combatente, que já estava cansado da pressão dos acontecimentos. Começava a surgir um sentimento de mal-estar, que era sentido, embora ainda não definido.

Fritz Fullriede

O diário do Oberstleutnant (tenente-coronel) Fritz Fullriede[5], que tantas vezes criticou a condução das operações durante esse período, não mostra nenhuma emoção. O que ele escolheu não contar é, em alguns aspectos, mais significativo do que o que ele contou. Depois de discutir a situação com seus camaradas no refeitório dos oficiais em Utrecht, Holanda, no dia 2 de setembro, ele escreveu em seu diário:

“A Frente Ocidental acabou, o inimigo já está na Bélgica e na fronteira alemã; Romênia, Bulgária, Eslováquia e Finlândia pedem paz. É exatamente como em 1918”.

Para aquela geração, o ano de 1918 foi o equivalente ao ano zero. Teríamos que começar tudo de novo, do zero.

Em 1944, a Wehrmacht e a Waffen SS não estavam totalmente imunes às atrocidades que haviam cometido até então. As divisões que estavam em campo na Frente Oriental, que eram a maioria naquela época, testemunharam o tratamento dado aos guerrilheiros e prisioneiros soviéticos. Consequentemente, pouca misericórdia era esperada dos Aliados como um todo e nenhuma dos Russos. Dos 5,7 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, 3,3 milhões morreram em cativeiro. E aqueles infelizes alemães que foram cercados pelos soviéticos após o colapso do Grupo de Exércitos do Centro[6], estavam recebendo o mesmo tratamento.

Kershaw informa que relatórios oficiais alemães se referiam aos guerrilheiros como “bandidos“. Não havia lugar na mentalidade militar alemã organizada, ou em sua doutrina tática, alguma norma ou mesmo ideias para lidar com civis irregulares. Essa incapacidade da Wehrmacht de compreender a mentalidade da “guerrilha” foi responsável por sua incapacidade de enfrentar levantes de Resistência e pela utilização em larga escala de um terror cruel e sádico para combatê-las. Historicamente, esse tem sido o caso desde a Guerra Franco-Prussiana de 1870 até a Primeira Guerra Mundial e igualmente na Segunda.

Milhares de soldados foram designados para tarefas policiais nas áreas de retaguarda da Frente Oriental. Incapaz de lidar com o mesmo fenômeno na Frente Ocidental, atrocidades como as de Vercors[7] e Oradour-sur-Glane[8] ocorreram. Os guerrilheiros holandeses, capturados ou suspeitos, eram frequentemente fuzilados de maneira rápida. Houve execuções perto de Arnhem pouco antes do desembarque dos paraquedistas.

Em 1944, a derrota do Exército Alemão na Holanda e no resto da Europa era iminente. Mesmo que houvesse dúvidas sobre as qualidades de liderança do Führer Adolf Hitler após os desastres no Leste e no Oeste no verão de 1944, a exigência dos Aliados de “Rendição incondicional” provocou uma resposta visceral e instintiva de que não havia outra saída a não ser continuar lutando.

Essa situação obscureceu as diferenças entre nazistas e antinazistas. Uma pesquisa dos Aliados com prisioneiros alemães revelou que, em uma unidade típica, nazistas fanáticos, nazistas apolíticos e antinazistas eram praticamente iguais. Os nazistas eram consideravelmente mais numerosos entre os oficiais subalternos e suboficiais, e estes últimos, como espinha dorsal das tropas, escolheram continuar lutando.

Durante as entrevistas, ao perguntar a um antigo cabo o que ele pensava em relação à derrota da Alemanha próximo do final da guerra, ele me disse que certa vez perguntou a um suboficial de sua inteira confiança o porquê deles não se renderem, se tudo estava praticamente perdido?

Sua resposta evasiva e sarcástica, cheia de humor negro, foi: “Aproveite a guerra enquanto pode, porque a paz será terrível.

E O Que Tem Isso Com a FEB?

Realmente, como comentamos anteriormente, o material produzido pelo norte-americano Robert J. Kershaw está focado na atuação dos alemães na Holanda em setembro de 1944, mesmo mês em que a FEB se engajava nos seus primeiros combates na Itália.

Mas, ao ler o livro de Willian Waack (páginas 298 a 290), o autor parece não deixar muitas dúvidas que o alemão que combatia na Holanda era o mesmo que estava na Itália.

Transcrevo essas páginas e deixo os leitores à vontade para considerarem essa minha opinião correta, ou não!   

“Quando se considera a situação sem saída dos alemães a partir de meados de 1944, ainda assim se pode estabelecer a hipótese plausível de que o soldado raso alemão, sem grandes possibilidades de ouvir rádios estrangeiras (a população “em casa” tinha mais o a esse tipo de informação “inimiga” do que o soldado na frente), nutrisse àquela altura algum tipo de crença na possibilidade de uma vitória. Para oficiais com discernimento médio, em posições de comando, as dificuldades de abastecimento, a superioridade material inimiga e o constante movimento de recuo – fora as assombrosas notícias sobre derrotas alemãs na Frente Russa – deveriam constituir, no mínimo, motivo para alguma reflexão. Para oficiais inteligentes, como o general von Gablenz ou o coronel Herre (que muito antes do final da guerra já se preparava para o seu prosseguimento sob a forma da “guerra fria”), em 1944 o conflito era abertamente dado como perdido para a Alemanha. A motivação do alemão que enfrentou brasileiros na Itália a partir de outubro de 1944 teria sido a crença na vitória? A motivação ideológica? O fanatismo do desespero?

Não. Nenhum dos sobreviventes aponta a “motivação ideológica” como elemento central para prosseguir numa luta desigual contra um adversário reconhecidamente superior. Deve ser verdade. A grande maioria dos entrevistados ara por horrores em outras frentes e pensava, sobretudo em sair viva de uma guerra na qual já não via muito sentido. “O general von Gablenz tinha um jeito especial de pedir maiores esforços às tropas”, recorda-se o ex-major Goetze. “Ele se dirigia frequentemente aos homens dizendo que a única maneira de voltar logo para casa seria resistir e organizar uma retirada cautelosa, que nos permitisse chegar à fronteira da Suíça e ar daí para a Alemanha. Entregar-se ao inimigo não era solução, ele dizia, e seu apelo tinha muito efeito.”

Os soldados alemães na Itália eram veteranos experimentados com a própria propaganda e a adversária. O que os mantinha juntos e ainda, mal ou bem, lutando parecia ser um forte senso de disciplina e, no caso de alguns oficiais, de dever profissional (se se preferir, de uma falsa ética vilipendiada por uma causa errada, prova de que as “virtudes” têm de ser consideradas sempre em relação aos propósitos que se perseguem), mesmo que isso levasse a casos beirando o fatalismo inútil.

Alguns, como o capitão Otto Schweitzer, gostam de lembrar (talvez um álibi) o caso do coronel Kurt Stöckel, oficial declaradamente simpático aos social-democratas, “mas preocupado em cumprir seu dever como soldado”. “O que dizer dos brasileiros, o que estavam fazendo lá, se não cumprindo seu dever como soldados, da mesma maneira que nós fizemos? Acho que deve ter sido ainda mais difícil explicar para os brasileiros o que tinham a fazer na Itália do que a nós mesmos, que já não compreendíamos o sentido daquela luta.”

Outros, como o capitão Alfred Pfeffer, pergunta-se qual teria sido a alternativa: “Que iria eu fazer? Mandar meus homens se entregarem?

Sabotar a linha de frente? Tinha, afinal, de pensar também na minha responsabilidade frente aos outros camaradas nos outros trechos da frente, que poderiam ser dominados pelo inimigo se eu abandonasse meu pedaço.” Ao longo do tempo, evidentemente, os oficiais sobreviventes fizeram questão de serem tratados só como os soldados profissionais que afirmam ter sido – e sequer dos mais entusiasmados: apenas um grupo preso a uma resignação obstinada, ao sabor de um destino sobre o qual julgavam não ter a menor influência.

NOTAS————————————————————————


[1] O Bolsão de Falaise, ou Batalha do Bolsão de Falaise, foi o engajamento decisivo da Batalha da Normandia na Segunda Guerra Mundial e ocorreu entre 12 a 21 de agosto de 1944. As forças aliadas formaram um bolsão ao redor da cidade sa de Falaise, no qual o Grupo de Exércitos B alemão, consistindo do 7º Exército e do 5º Exército Panzer, foram cercados pelos Aliados Ocidentais. A batalha resultou na destruição da maior parte do Grupo de Exércitos B a oeste do rio Sena, o que abriu caminho para Paris, depois Bélgica, Holanda e a fronteira franco-alemã.

[2] Fighting Power. German and US Army Performance 1939—45 (Greenwood Press, USA, 1982)

[3] Um exemplo desses “Grupos de Combate” é o Kampfgruppe Walther, que surgiu em meio às lutas da Operação Market Garden com o objetivo inicial de aniquilar as concentrações de paraquedistas ingleses e americanos e bloquear qualquer avanço adicional dos Aliados. Esse grupo de batalha improvisado foi formado sob o comando do coronel Erich Walther, do Fallschirmjäger (paraquedistas), e eventualmente consistiu em soldados de todos os serviços; Fallschirmjäger, Luftwaffe, exército regular e SS. O grupo entrou em ação pela primeira vez em 11 de setembro de 1944, depois que a Divisão de Guardas Britânica capturou a ponte em Lommel/Neerpelt, apelidada de Ponte de Joe. Depois o Kampfgruppe Walther lutou contra os americanos e britânicos em uma série de batalhas sangrentas nos pântanos de Peel, ainda na Holanda. A história culmina na Batalha de Overloon, sudeste da Holanda, onde algumas das lutas foram as mais difíceis travadas desde a Normandia e as baixas aliadas e alemãs foram horrendas. Durante seu breve período de existência o Kampfgruppe Walther lutou contra a 101ª Divisão Aerotransportada e a 7ª Divisão Blindada, ambas norte-americanas, como também contra a 3ª Divisão, a Divisão de Guardas e a 11ª Divisão Blindada, todas britânicas.

[4] A expressão “Queimar pontes” tem suas origens em estratégias militares antigas. Quando um exército cruzava uma ponte rumo ao território inimigo, era comum destruí-la atrás de si. Essa atitude eliminava qualquer possibilidade de recuo, simbolizando um compromisso irreversível com a batalha.

[5] Fritz Fullriede (4 de janeiro de 1895 – 3 de novembro de 1969) foi um oficial alemão e criminoso de guerra durante a Segunda Guerra Mundial . Fullriede lutou na invasão alemã da Polônia , na Frente Oriental , no Afrika Korps e na Campanha Italiana . O último comandante do Festung Kolberg , Fullriede recebeu a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro com Folhas de Carvalho em 1945. A defesa capaz de Fullfriede de Kolberg permitiu que 70.000 civis e 40.000 militares evacuassem Kolberg por via marítima para outras partes da Alemanha. Após a guerra, Fullriede foi julgado e condenado por um tribunal holandês por seu papel no ataque de Putten em 1944. Ele foi sentenciado a 2,5 anos de prisão.

[6] Grupo de Exércitos do Centro, ou Heeresgruppe Mitte, foi um grupo de exércitos da Wehrmacht (Exército Alemão), criado durante a Segunda Guerra Mundial para lutar primordialmente na Frente Oriental. Foi um dos três exércitos reunidos pelos alemães para a chamada Operação Barbarossa, a invasão da antiga União Soviética em 1941.

[7] A Batalha de Vercors, ocorrida entre julho e agosto de 1944, foi um intenso combate entre um grupo rural das Forças do Interior sas (FFI), os conhecidos “Maquis”, e as forças nazistas que ocuparam a França desde 1940. Os Maquis usaram o Massif du Vercors (Planalto de Vercors) como refúgio e de onde partiam para realizarem sabotagens e operações contra os alemães. Os Aliados apoiaram os insurgentes com lançamentos de armas de paraquedas e fornecendo equipes de conselheiros e treinadores. Mas a revolta foi prematura. Em julho de 1944, até 10.000 soldados alemães invadiram o maciço e mataram mais de 600 Maquis e 200 civis, muitos deles executados. Foi a maior operação da Alemanha na Europa Ocidental contra guerrilheiros.

[8] Oradour-sur-Glane era uma comunidade rural tranquila no centro da França. Na manhã de 10 de junho de 1944, apenas quatro dias após o Dia D, entrou na vila algo entre 120 e 200 soldados do regimento Panzer Der Führer da Waffen-SS (um ramo da 2ª Divisão Panzer SS Das Reich). Sob o comando do SS-Sturmbannführer (Major) Adolf Diekmann, em meio a gritos, empurrões e coronhadas, os SS separaram em três grupos os homens, as mulheres e as crianças no mercado e na igreja local. Carros blindados saíram atrás dos cidadãos que estavam trabalhando nos campos e em uma hora os SS reuniram todos os moradores que puderam encontrar. Na sequência, abriram fogo com suas metralhadoras e pam fogo na igreja., onde. Ao final massacraram 642 seres humanos e queimaram a vila até o chão. Até hoje o motivo do ataque alemão a Oradour permanece desconhecido. As ruínas da vila estão preservadas exatamente como foram deixadas em 10 de junho de 1944. Oradour agora serve como um símbolo de lembrança às atrocidades que os ses enfrentaram sob a opressão nazista.

DIA D – O MAIS LONGO DOS DIAS

Agosto de 1942. Um homem governa a Europa. De Berlim, ele controla um império que além da Alemanha inclui a Áustria, Tchecoslováquia, Polónia, Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Holanda, Bélgica, França, Lituânia, Letônia, Estônia, Hungria, Roménia, Bulgária, Iugoslávia, Albânia, Grécia, várias ilhas mediterrâneas, quase toda a costa setentrional da África e 2.000.000 de km² da antiga União Soviética.

A Itália de Mussolini é sua aliada. A Espanha de Francisco Franco e Portugal de Antônio de Oliveira Salazar, são seus simpatizantes. Na Europa só restam neutras a Suécia, a Suíça e a Turquia. A Europa está nas mãos de Adolf Hitler.

No entanto, a expansão do nazismo havia atingido seu ponto crítico. Do outro lado do Mediterrâneo, na África, os contra-ataques dos exércitos britânicos haviam detido o avanço dos alemães. A leste, o Terceiro Reich encontrara um obstáculo intransponível: a cidade russa de Stalingrado.

Lentamente, mudavam os ventos da fortuna.

Mulheres atuando na artilharia anti aerea na Inglaterra – Fonte – Office official photographer

Em fevereiro de 1943, as tropas alemãs que assediavam Stalingrado (atual Volgogrado) rendiam-se ao marechal russo Zhukov. Em maio, o famoso general alemão Rommel era definitivamente derrotado na África, e em julho o general americano Mark Clark conduzia as forças americanas e aliadas, invadindo a Itália. Não obstante, o avanço soviético a leste e anglo-americano ao sul era penoso. Embora os aliados mantivessem a hegemonia no Atlântico e aumentassem sistematicamente sua vantagem aérea, em terra o poderio alemão parecia invencível, apesar de algumas derrotas.

Praias na França semanas antes do Dia D – Fonte – Bundesarchiv_Bild_101I-719-0240-05,_Pas_de_Calais,_Atlantikwall,_Panzersperren

Através do canal da Mancha, o exército alemão de ocupação na França e as tropas aliadas acantonadas na Inglaterra entreolhavam-se ferozmente. Mas a guerra poderia arrastar-se sem fim, a menos que fosse aberta uma terceira frente que levasse diretamente ao coração da Alemanha. O caminho para lá atravessava a França. Era preciso invadi-la partindo da Inglaterra.

O Afiar das Garras

Em maio de 1944, é a invasão. Concentram-se na Inglaterra dezessete divisões britânicas e vinte divisões americanas. Havia ainda tropas remanescentes que escaparam dos territórios ocupados: uma divisão polonesa, sob o comando do General Sikorski, e outra sa, sob a liderança de um homem muito alto, cujo nome estava popularizando-se rapidamente: Charles de Gaulle, que nos anos anteriores organizara um governo livre na Argélia.

Bombardeio quadrimotor norte americano B-24, do 376th Bombardment Group.

Os aliados contavam com 16 mil aviões, dos quais 3.467 bombardeiros pesados e 5.407 caças. Mais de 6 mil navios de todo tipo esperavam ao largo da costa o dia do desembarque. Ao todo, quase três milhões de homens prontos para o combate. (ATENÇÃO – Um dos pilotos da Real Força Aérea Inglesa, que inclusive morreu em combate no Dia D, nasceu em Recife, Pernambuco e pilotava um caça Mustang P-51 – VEJA EM – /2022/11/04/exclusivo-quem-foi-o-brasileiro-que-morreu-no-dia-d-pilotando-um-caca-mustang/ )

Sir Leigh Mallory, comandante-chefe da força aérea, ordenava incursões diárias sobre o território ocupado, despejando milhares de toneladas de bombas. Os clandestinos maquis da Resistência sa intensificavam seus ataques contra as linhas de comunicação e suprimento inimigas.

Os alemães também estavam prontos. Conheciam os preparativos maciços que se faziam na Inglaterra e ignoravam somente o ponto exato da invasão. Hitler jactava-se da “Muralha Atlântica”, descrevendo-a como “um cinturão de fortalezas e gigantescas fortificações, desde a Noruega aos Pireneus”.

Típico oficial alemão durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, havia pontos fracos na defesa germânica. A “Muralha Atlântica” era menos poderosa do que o próprio Hitler acreditava. As comunicações alemãs, sob contínua pressão de bombardeiros e ações de sabotagem, começavam a se tornar deficientes. A Luftwaffe (força aérea alemã) tornava-se impotente para, ao mesmo tempo, bombardear os territórios aliados e defender as áreas ocupadas.

Na verdade, os alemães contavam com duas armas: nas praias os canhões camuflados com as cercas de arame farpado da “Muralha Atlântica” e 60 divisões de exército distribuídas pela Europa ocidental. O problema que se apresentava aos estrategistas do Eixo era a tática a adotada. Hitler e Rommel confiavam nas fortificações costeiras e pretendiam destruir os invasores nas praias atacadas. O Marechal von Rundstedt, comandante do exército, preferia confiar em seus soldados. Seu plano era permitir o desembarque e depois proceder a um contra-ataque organizado.

O grosso das tropas, equipamentosa e armamentos seguiu a bordo de centenas de navios de transporte.

A controvérsia era importante. O projeto de Hitler pressupunha uma superioridade de fogo alemã em qualquer ponto que os aliados atacassem. Nas praias seria jogado o sucesso ou fracasso da invasão. Se as forças anglo-americanas conquistassem as praias, a Alemanha se veria obrigada a recair na defensiva. O plano de Rundstedt era mais cauteloso e se baseava na superior mobilidade das tropas alemãs. Sua ideia era proceder a uma ação de retardamento, permitindo o desembarque enquanto concentrava forças para contra golpear. Esse plano tinha duas vantagens: afastaria o combate principal das praias, eliminando o fator surpresa e impediria que as linhas fossem rompidas ao primeiro impacto do ataque. Mas prevaleceu, naturalmente, o plano de Hitler. Entretanto nenhum dos planos tomou em consideração um problema sério e básico: o apoio da população local aos aliados.

Hora, Dia e Lugar

Os soldados de infantaria dos Estados Unidos atravessam as ondas ao desembarcarem na Normandia, no Dia D. (Foto AP)

O lugar aparentemente mais lógico para a realização da invasão era o o de Calais, onde o mar se estreita e poucos quilômetros separam Calais, na França, de Dover, na Inglaterra. De fato, na região acotovelavam-se milhares de soldados e grandes quantidades de armas e equipamentos. Os observadores alemães davam conta de grande movimentação de tropas. Parecia certo que a qualquer momento os aliados atacariam Calais.

No entanto, tudo era falso. Os aviões e tanques que os espias alemães viam concentrar-se eram de madeira, borracha e papelão. A atividade das tropas era feita de maneira a fazer supor que seu efetivo era muitas vezes superior à realidade. O local do ataque não era Calais, mas as costas da Normandia, mais ao sul.

Rotas de desembarque no Dia D na Normandia – Fonte – Wikipedia

O objetivo eram cinco praias na baía do Rio Sena, que receberam nome em código: Utah e Omaha a oeste, cuja captura estaria a cargo do I Exército americano, chefiado pelo general Omar Bradley. Gold, June e Sword, a leste, seriam alvos das tropas anglo-canadenses do II Exército britânico. Na França o comando geral pertenceria ao general inglês Bernard Law Montgomery. O comandante em chefe de toda a operação era o então general Dwight D. Eisenhower.

O dia marcado precisava ser suficientemente claro para permitir o lançamento de para quedistas durante a noite e facilitar as missões de apoio aéreo. Também era necessário que a maré fosse baixa, para evitar os obstáculos colocados à beira-mar, e que o oceano estivesse tranquilo, para os navios de assalto efetuarem a travessia sem contratempos. Escolheu-se 5 de junho. E a notícia foi transmitida em código à Resistência sa, para preparar o auxílio em terra.

Navios de desembarque descarregando tanques e suprimentos na Praia de Omaha na Normandia- Fonte – Wikipedia

Operação Overlord

O dia 5 de junho chegou e ou. Nada aconteceu. O mau tempo fizera com que que a data fosse transferida. A Eisenhower cabia uma importante decisão: o tempo não melhoraria antes de 7 de junho, quando terminaria a fase das marés favoráveis. Condições ideais só existiriam meses depois. Competia-lhe adiar a invasão por tempo indeterminado ou arriscar-se a atacar sob condições atmosféricas desfavoráveis. A decisão era: atacar.

À zero hora de 6 de junho, a Real Força Aérea britânica começou a despejar 6.000 toneladas de bombas sobre objetivos militares entre Cherburgo e Le Havre. Começara a Operação Overlord. Chegara o Dia D.

Tanques M4 Sherman do Exército dos Estados Unidos em uma embarcação de desembarque (LCT), pronto para a invasão da França, final de maio ou início de junho de 1944 – Fonte – Wikipedia

À 01h30, os paraquedistas ingleses da 6.ª Divisão eram lançados sobre Breville. Sua missão era capturar o local e proteger os movimentos da ala esquerda britânica em Sword. Ao mesmo tempo, os homens da 82ª e 101ª divisões aerotransportadas dos Estados Unidos saltavam à retaguarda da praia de Utah, no rumo da localidade de Sainte-Mère-Eglise. Deveriam estabelecer uma cabeça de ponte e aguardar a chegada do 7º Corpo do Exército, que desembarcaria em Utah e desviaria para oeste, a fim de isolar a península de Cotentin. Os aliados precisavam de um porto, e o escolhido foi o de Cherburgo. Essa ação destinava-se a tomá-lo.

Ao alvorecer, os bombardeiros americanos atiraram mais de 3.000 toneladas de bombas sobre as defesas da costa. Às 06h30, com a cobertura cerrada da artilharia naval, começava a invasão.

Poderio aéreo aliado era enorme durante o Dia D – Fonte – NARA.

Na Normandia, o VII Exército alemão, com quinze divisões, foi colhido de surpresa. Confiando no mau tempo, o Comandante Dollman se ausentara, assim, como seu superior, Rommel. Rundstedt, ante a gravidade da situação, pediu imediatamente permissão ao Quarte General para colocar em combate as reservas mecanizadas.

A 352ª Divisão alemã conseguiu criar muitos problemas para os americanos em Omaha, infligindo pesadas perdas. A direita inglesa também foi paralisada. Mas, em Utah, as tropas dos Estados Unidos penetraram nove quilômetros, conectando com as forças da 101ª Divisão Aerotransportada. Do outro lado, em Juno, os canadenses avançavam onze quilômetros. E, na esquerda, Breville e Ouistreham eram capturadas pelos ingleses.

Praia Gold – Fonte – Wikipedia

O único contra-ataque violento sobre os ingleses foi desferido pela 21ª Divisão Panzer durante a tarde, pois só às 15h30 o Quartel General alemão resolvera permitir a Rundstedt que lançasse mão das reservas blindadas. No entanto, era muito tarde para impedir o desembarque. Correndo o risco de se verem isolados, os defensores da costa foram forçados a retroceder.

Ao cair da noite, os aliados haviam rompido a “Muralha Atlântica” entre os rios Vire e Orne, estabelecendo uma frente de 48 quilômetros. Terminara o Dia D.

O Terceiro Reich: Princípio do Fim

Prisioneiros de guerra alemães em 19 de agosto de 1944 às 14h00. Eles renderam-se ao grupo de batalha da 4ª Divisão Blindada Canadense – Fonte -http://archives.cbc.ca/war_conflict/second_world_war/clips/1303/ Aujourd’hui: http://www.flickr.com/photos/mlq/4431414623/

Os dias posteriores foram dramáticos. Rundstedt lançava contragolpes desesperados em toda a frente. Enquanto isso, o XVº Exército alemão, com dezessete divisões, permanecia inútil em Calais, aguardando uma invasão que jamais viria. Em 13 de junho, os aliados já haviam desembarcado 326 mil homens, 54 mil veículos e 104 mil toneladas de provisões.

Com incontestável supremacia aeronaval, os aliados firmavam suas cabeças de praia e iniciavam o avanço para o interior. A 19 de junho, uma tempestade causou-lhes sério revés, destruindo o porto artificial americano em Saint-Laurent-sur-Mer e avariando seriamente o dos ingleses em Arromanches. Mas, a 27 de junho, Cherburgo rendia-se e os aliados conquistavam um porto definitivo.

Soldados canadenses com uma bandeira nazista capturada – Wikipedia

Depois disso, a ofensiva foi lenta, mas inexorável. Os soviéticos avançavam a leste. E Hitler conhecia o terrível significado da guerra em todas as frentes. O rumo dos aliados era Paris, mas não puderam tomá-la. Essa glória coube à infatigável Resistência sa, que organizou um levante popular a 25 de agosto. No mesmo mês há um novo desembarque aliado, desta vez ao sul da França. A Alemanha recua em todas as frentes. Em novembro, o persistente von Rundstedt engendra um contra-ataque nas Ardenas, para chegar à Bélgica e cortar as linhas de comunicação aliadas. Mas o ataque fracassa e o Terceiro Reich agoniza. As forças aliadas atravessavam as fronteiras do mundo concentracionário nazista, para varrê-lo do mapa e da história.

Cemitério militar canadense de Beny-sur-Mer – Fonte – Wikipedia.

Fonte – Enciclopédia Conhecer, Abril S.A, Cultural e Industrial, São Paulo-SP, 1974 – Volume VII – páginas 1558 e 1559.

JEAN SCHRAMME – O LÍDER MERCENÁRIO BELGA QUE VIVEU NO MATO GROSSO

Nasceu Em Uma Família Rica e Foi Viver Como Fazendeiro na África – Foi Expulso de Suas Terras Após a Independência do Congo e Se Tornou um Mercenário – Participou de Vários Combates na África e Mostrou Muita Liderança e Coragem – Após o Fim da Luta Decidiu Morar no Brasil – Enganou os Militares da Ditadura Brasileira – Vivia em Paz com Sua Família em Rondonópolis, Mato Grosso – Foi Preso Pela Polícia Federal e Quase Foi Extraditado Para Bélgica

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Jean Marie Joseph Antoine Thomas Schramme nasceu em 5 de março de 1929, na cidade belga de Bruges, um antigo burgo que ganhou o status de cidade no ano de 1128 e era conhecida na Idade Média por sua sofisticada indústria de linho. Os Schramme eram uma família de classe média alta e bem situada na sociedade local. Joseph Marie Pie Schramme, avô de Jean, foi um advogado de renome, que atuou durante algum tempo como vereador na cidade.

Durante a Primeira Guerra Mundial quase toda a Bélgica foi ocupada por tropas alemãs e Bruges sofreu muito com essa situação. Pie Schramme, diante da sua resistência ativa, foi preso e deportado para a Alemanha, onde ou por sérias privações e só voltou para casa no final da guerra.

Seu filho, Joseph Marie Camiel Schramme, serviu durante a Primeira Guerra na artilharia belga, onde foi agraciado com a medalha Croix du Feu. Após o conflito Joseph seguiu os caminhos do seu pai e se tornou um advogado de sucesso em Bruges, casou com Elza Dassonville e dessa união nasceram quatro filhos, sendo o caçula Jean Schramme. Este foi criado na mansão ancestral de sua família na Rue Haute, número 20, onde seus pais lhe transmitiram que os princípios da lei, da ordem e da justiça não eram meras palavras, mas “motivos para viver e morrer“.

Jean Schramme na juventude – Fonte – Facebook.

Durante a Segunda Guerra Mundial o jovem Jean sobreviveu junto com a sua família o terrível período da ocupação nazista na Bélgica. Depois de estudar no Collège Saint-Louis, sem nenhuma vocação particular, Jean decidiu ir para o Congo Belga em 1947. Seu pai, presidente da Ordem dos Advogados da cidade, saudou essa reviravolta. Para a sua família francófona da região de Flandres Ocidental, foi uma revelação que o caçula de 18 anos deixasse uma Europa devastada pelo conflito e fosse viver no Continente Africano.

O ídolo do jovem Schramme era seu tio Joseph Muylle, que desde 1914 atuava como funcionário público na região congolesa de Katanga. Foi ele que transmitiu a Jean informações sobre a colônia e a “missão civilizadora” da Bélgica no Congo.

Schramme na África.

Na África o céu azul do Congo suplantou em seu coração o cinza da Bélgica. Consta que Jean Schramme prestou serviço militar na Force Publique, nas Bases de Kamina e Kitona, e depois trabalhou como aprendiz de fazendeiro na plantação de Joseph Dobbelaere, um comerciante de café e borracha que lhe mostrou os meandros da colônia belga. Como possuía uma forte veia empreendedora, aos 22 anos Schramme já tinha sua própria plantação de café na área perto de Bafwakwandji, ou Bafwasende, uma floresta selvagem e posto avançado da fronteira a cerca de 60 quilômetros a nordeste de Stanleyville, atual Kisangani, na parte oriental do Congo.

Segundo todas as informações apuradas, Schramme gostava profundamente da África, dos africanos e se autodenominava Un Africain Blanc, ou Africano Branco. Aos amigos Jean dizia que o Congo era “a sua pátria”, onde istrou sua propriedade sob um estilo de liderança autoritário, mas ao mesmo tempo paternalista, ao ponto dos seus trabalhadores africanos o chamarem de père (pai).

Marfim de elefantes em um depósito na África Oriental.

Schramme achava que entendia o Congo muito melhor do que os congoleses e acreditava que o país deveria permanecer uma colônia belga para sempre. Consta que ele odiava os évolués, ou evoluídos, os congoleses com educação ocidental, que para ele não eram congoleses de verdade. Seu congolês ideal eram os trabalhadores da sua fazenda. No ponto de vista de Schramme, ele e os outros colonos belgas deveriam fornecer o cuidado paternalista estrito, mas amoroso, que ele acreditava ser o que os congoleses precisavam.

Por mais de dez anos ele istrou a sua vasta propriedade, permanecendo solteiro e vivendo a típica vida de um colonialista europeu na África.

A Independência do Congo e a Secessão de Katanga

Na antiguidade a região ao longo do rio Congo foi ocupada por povos bantos da África Oriental e povos do rio Nilo, que ali fundaram os reinos de Luba, Lunda e do Congo, entre outros. Em 1878, o explorador britânico Henry Morton Stanley fundou entrepostos comerciais ao longo do rio Congo.

O polêmico Leopoldo II

Na Conferência de Berlim de 1885, que dividiu a África entre as potências colonizadoras europeias, a região do Congo foi fatiada entre três países europeus – Bélgica, França e Portugal. Só que o rei Leopoldo II da Bélgica recebeu o território como uma possessão pessoal, uma imensa propriedade particular com área equivalente aos estados do Pará e da Bahia. O rei então colocou es brancos para tomar conta do seu super latifúndio, onde em poucos anos conseguiu amealhar uma fortuna com o marfim dos elefantes e a extração da borracha, utilizando para isso o trabalho forçado da população nativa.

A istração de Leopoldo II no Congo foi caracterizada por atrocidades e brutalidades sistemáticas, incluindo tortura, assassinato e amputação das mãos de homens, mulheres e crianças quando as cotas de produção de marfim e borracha não alcançavam as metas desejadas. Canalhamente esse soberano batizou a sua propriedade como Estado Livre do Congo.

Atrocidades cometidas contra os habitantes do Congo na época de Leopoldo II.

Mas em 1908, depois que as brutalidades ali realizadas foram escancaradas na imprensa ocidental, o tal Estado Livre do Congo deixou de ser propriedade do rei e se tornou oficialmente uma colônia da Bélgica, com a istração sendo realizada por funcionários públicos. A região então ou a se chamar Congo Belga e um ano após essas mudanças, talvez abalado pela perda da sua imensa propriedade, Leopoldo II morreu aos 44 anos.

O controle do continente africano pelos europeus aconteceu até o final da Segunda Guerra Mundial, quando então boa parte dos países africanos conquistaram suas independências.

Belgas mortos no Congo.

Em janeiro de 1959, tumultos eclodiram quando centenas de milhares de congoleses saíram às ruas para exigir a independência do país, o que levou o estado belga a concordar que o Congo se tornaria independente em 30 de junho de 1960. Grande parte dos quase cem mil belgas que ainda permaneciam na região preferiram abandonar o país às pressas, deixando seus pertences para trás. Mas outra parte dos brancos preferiu ficar em suas fazendas, sem aceitar a independência congolesa.

Prevendo a deflagração de conflitos, o empreendedor Jean Schramme começou a estocar armas e munições, enquanto prendia em seu carro placas de metal e uma metralhadora, para assim criar um veículo blindado improvisado.

Alegria dos congolenses com a independência do seu país.

Na data combinada, o Congo Belga conquistou a independência, tornando- se a República Democrática do Congo. Joseph Kasa-Vubu foi empossado como presidente e Patrice Lumumba, que tinha o apoio dos comunistas da União Soviética, foi eleito primeiro-ministro. Pouco depois, o neófito exército congolês se amotinou contra seus oficiais belgas, que haviam sido colocados no comando devido à falta de oficiais nativos. Não demorou e começaram saques desenfreados por todo o país, com alguns congoleses atacaram seus antigos mestres brancos e vários foram mortos.

Exército congolês.

Com o Congo caindo no caos, Schramme forneceu uma guarda armada para mover os colonos belgas da sua região para a colônia britânica de Uganda. Ele afirmou que nessa época foi preso duas vezes e teria visto oito colonos brancos enforcados sem julgamento. O próprio Schramme teve sua fazenda invadida e queimada e assim fugiu para Uganda. Ali onde soube que Moise Tshombe, governador da área de Katanga, pretendia separar sua região da República Democrática do Congo.

Moise Tshombe.

Tshomb era um empresário e político anticomunista, que rompeu com o governo nacional e criou a província autônoma de Katanga em 11 de julho de 1960, onze dias depois da independência do Congo. Rica em minerais como diamantes, estanho e cobre, a independência de Katanga era intensamente desejada por grandes empresas exploradoras de minérios, como a poderosa Union Minière du Haut Katanga (UMHK). Tshomb então exigiu a ajuda militar e logística belga que, a pretexto de proteger seus cidadãos na região, enviou tropas para Katanga.

No entanto, o Estado de Katanga nunca seria reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e não demorou para que essa organização, através do seu Conselho de Segurança, respondesse ao apelo do primeiro-ministro congolês Lumumba e criasse a Operação das Nações Unidas no Congo (ONUC), que enviou 20.000 soldados da paz, provenientes de vários países, para tentar restaurar a ordem.

Patrice Lumumba.

Mesmo com as forças da ONU substituindo gradualmente as tropas belgas, estas não intervieram diretamente para encerrar a secessão de Katanga. A partir de então, Lumumba voltou-se abertamente para os soviéticos, seguindo o exemplo de Fidel Castro em Cuba. Não demorou para Patrice Lumumba ser preso, levado para Katanga e cruelmente executado, com a cumplicidade dos governos belga e norte-americano.

Embora o novo Estado de Katanga mantivesse muitos quadros técnicos e conselheiros militares belgas, teve desde muito cedo de reforçar as suas forças militares recorrendo a mercenários, que ficariam conhecidos como Affreux, ou Horríveis.

Mercenários no Congo.

Tshombe contratou os chamados “Soldados da Fortuna” principalmente na Europa, onde não faltavam ex-combatentes de muitos conflitos dispostos a ganhar algum dinheiro “fazendo guerras”. Sobre essa questão historiadores militares acreditam que esse único movimento de contratação é responsável por reviver a profissão de mercenário nos tempos modernos.

A Guerra dos Mercenários

Entre os contratados se destacaram alguns ex-oficiais superiores do exército francês, como Roger Trinquier e Roger Faulques, muito ligados à sua instituição de origem e que só agiam sob ordens secretas de Paris. 

Civis belgas deixam o Congo em meio aos conflitos.

Mas logo outras grandes figuras surgiram: o irlandês Thomas Michael Hoare, que tinha o apelido de “Mad Mike Hoare” e o francês Bod Denard, ou Gilbert Bourgeaud. Schramme voltou rapidamente ao Congo e foi alistado como oficial de treinamento na Base de Kamina. Não podemos esquecer que esses mercenários também atendiam os interesses das mineradoras estrangeiras na região, mas no caso de Schramme ele sempre afirmou que o seu objetivo maior sempre foi se restabelecer como fazendeiro após ter abandonado sua propriedade.

Mercenário abre fogo com metralhadora em uma estrada do Congo.

Schramme estava no Groupe Mobile E, uma unidade de mercenários comandada por um escocês beberrão chamado Robert Chambers, que se autodenominava Louis Chamois e cujo francês era péssimo. Schramme não ficou impressionado com Chambers, a quem afirmou: “À primeira vista, pensei que estava lidando com um bêbado duplamente louco. Ele fingiu ser um oficial, mas não estava interessado em nada além de sua garrafa e seu revólver“. O Groupe Mobile E tinha uma terrível reputação de crueldade, ao ponto de um colono belga, Frans Heymans, reclamar em maio de 1961 das “brutalidades nas mãos de Chamois e seus homens“.

Jean Schramme nos combates do Congo.

Schramme não era um soldado mercenário na acepção da palavra. Seus críticos afirmaram que ele era um indivíduo tímido e nervoso, um homem quase servil que desejava agradar aos outros. Entretanto, outras fontes apontam que rapidamente Schramme se tornou um dos principais conselheiros militares de Tshomb. Seus companheiros o iravam pela sua calma, seus longos silêncios e sua inegável ascendência sobre os africanos, que ele liderava com firmeza, mas sem brutalidade. “É um homem gentil que sabe fazer-se obedecer”, diziam dele.

Durante o famoso Cerco de Jadotville, em setembro de 1961, no qual uma pequena companhia irlandesa de Capacetes azuis da ONU resistiu bravamente aos mercenários e soldados catangueses, Schramme serviu como oficial subalterno do comandante mercenário francês Robert Falques, um antigo coronel do exército e paraquedista da Legião Estrangeira.

Acredito que por essa época Schramme foi se destacando na luta e ou a ser conhecido como Jean “Black Jack” Schramme.

Forças suecas da ONU em ação no Congo.

Não demorou e mais de duzentos mercenários da França, África do Sul, Alemanha Ocidental, Reino Unido, Irlanda, Espanha, Portugal e Angola chegaram à província de Katanga.

Os homens liderados por Mad Mike Hoare estavam no Commando 5, com a maioria vindo da África do Sul, complementados por outros elementos de origem anglo-saxã. Apesar da grande maioria desses combatentes ser abertamente racista, eles ganharam uma reputação muito boa em combate, sendo considerados um grupo de elite entre as unidades estrangeiras. 

Símbolo do Batalhão Leopardo

Havia também o Commando 6 sob as ordens de Bob Denard e o Commando 10 com Jean Schramme como líder. Esses dois últimos grupos possuía um grande número de combatentes negros em seus quadros. O belga ou a chamar a sua unidade como “Batalhão Leopardo” e se destacou ao liderar seus homens em batalha, particularmente na guerra móvel, onde se especializou na capacidade de resistir a forças muito superiores.

Mas não demorou e Schramme e muitos outros mercenários foram presos por soldados da força de paz da ONU e, depois de dois meses de cadeia, foi expulso para a Bélgica em 17 de setembro de 1961. Outros afirmam que um padre ajudou o belga a escapar.

Dois mercenários detidos por tropas indianas da ONU.

Após ar várias semanas em seu país natal, seguiu para a colônia britânica da Rodésia do Sul, atual Zimbábue, onde comprou o livro Citações do Presidente Mao para conhecer seu inimigo, como ele se expressou.

Durante seu tempo na Rodésia do Sul, Schramme recrutou vários colonos brancos britânicos e sul-africanos para acompanhá-lo na luta por Katanga, onde voltou clandestinamente. Ele foi enviado para Kansimba, no norte de Katanga, para reunir novas forças e lá recrutou um grupo de jovens entre quinze e dezoito anos, membros das tribos locais, além de alguns outros antigos plantadores.

Tropas da ONU respondendo ao fogo inimigo utilizando um veículo blindado como proteção.

Em outubro de 1961 tomou a cidade de Kisamba dos congoleses, relatando orgulhosamente que, devido à sua disciplina superior, sua pequena unidade havia derrotado dois batalhões do Armée Nationale Congolaise. A princípio não foram dados maiores créditos as alegações de Schramme, mas o fato veio a ser comprovado e chamou bastante atenção dentro e fora do exército de Katanga.

Mas em 15 de janeiro de 1963 ocorreu a derrota final de Katanga e Schramme levou uma força de cerca de 400 gendarmes catangueses para a colônia portuguesa de Angola.

Mercenários deixando a região de Katanga.

Não demoraria e ele retornaria ao Congo para novas lutas.

A Terrível e Cruel Rebelião Simba

No final de 1963, guerrilheiros chamados Simbas, ou “Leões”, se rebelaram no leste do Congo e receberam o apoio de soviéticos e cubanos. Eles foram inicialmente bem-sucedidos, tomando uma quantidade significativa de território e proclamando a cidade de Stanleyville a sua capital da “República Popular do Congo”, de orientação comunista.

Guerreiros Simbas.

Enquanto o governo congolês reclamava o território dos Simbas, o exército do Congo se desintegrou diante dos rebeldes, que muitas vezes conseguiram intimidar unidades bem equipadas do exército para que recuassem ou desertassem sem lutar. Na sequência os combativos Simbas recorreram a tomar como refém a pequena população branca na região. No final de julho de 1964, os insurgentes controlavam cerca de metade do Congo. Totalmente desmoralizados por repetidas derrotas, muitos soldados do exército congolês acreditavam que os rebeldes Simba haviam se tornado invencíveis graças a rituais mágicos realizados por xamãs insurgentes.

Área controlada pelos Simbas no auge da rebelião.

À medida que o movimento rebelde se espalhava, os atos de violência e terror aumentavam. Milhares de congoleses foram executados em expurgos sistemáticos pelos Simbas, incluindo funcionários do governo, líderes políticos de partidos de oposição, policiais provinciais e locais, professores de escolas e outros que acreditavam terem sido ocidentalizados. Muitas das execuções foram realizadas com extrema crueldade e apenas em Stanleyville foram assassinados cerca de 1.000 a 2.000 congoleses ocidentalizados.

General Mobutu.

O comandante do exército congolês, o general Joseph-Désiré Mobutu, persuadiu o presidente Joseph Kasa-Vubu a nomear Moise Tshombe como primeiro-ministro em 9 de julho de 1964. O novo líder então chamou de volta os mesmos mercenários que ele usou para lutar pela libertação de Katanga, para agora salvar o Congo. Schramme foi um dos mercenários que Tshombe recrutou.

Enquanto isso se desenrolava, os rebeldes começaram a fazer reféns da população branca local nas áreas sob seu controle. No final de outubro de 1964, quase 1.000 cidadãos europeus e americanos foram feitos reféns pelas forças rebeldes em Stanleyville. Em resposta, tropas da Bélgica e dos Estados Unidos lançaram uma ação militar, em parceria com o exército congolês e os grupos de mercenários.

Paraquedistas belgas na Operação Dragon Rouge.

Foi realizado em 24 de novembro um ataque aerotransportado, que recebeu o codinome Dragon Rouge e teve como alvo Stanleyville. Cinco aviões de transporte Hércules C-130 da Força Aérea dos Estados Unidos lançaram 350 pára-quedistas belgas do Régiment Para-Commandos no Aeroporto Simi-Simi, na periferia oeste de Stanleyville. Assim que os paraquedistas protegeram o campo de aviação e limparam a pista, eles seguiram para o Victoria Hotel, o principal da cidade, onde impediram que os rebeldes Simbas matassem um grupo de 60 reféns. Nos dois dias seguintes, mais de 1.800 americanos e europeus foram evacuados, bem como cerca de 400 congoleses.

Freiras confraternizando com mercenários no Congo.

Não foi por outra razão que na época as imagens de freiras e padres sendo libertados por mercenários correram o mundo, tornando esses “Soldados da Fortuna” heróis mundiais e ampliando fortemente a mística envolvendo esses combatentes. No entanto, os Simbas executaram 20.000 reféns congoleses e 392 ocidentais, incluindo 268 belgas, entre estes vários missionários.

Cerca de 500 mercenários, muitos do Commando 10 de Jean Schramme, participaram da retomada de Stanleyville, em meio a combates muito duros. Nesse período, a lenda de Schramme afirmou-se durante esse período e o próprio general Mobutu concedeu-lhe uma medalha chamada Ordre de la Bravoure e oficialmente o comissionou como coronel do exército congolês.

Jean Schramme como oficial.

Se esse general, que um dia mudaria seu nome para Mobutu Sese Seko, soubesse o que Jean Schramme e seus homens iriam fazer tempos depois, teria enfiado a medalha e a patente pela goela abaixo do belga.

A Revolta dos “Soldados da Fortuna”

Em novembro de 1965, o general Mobutu tornou-se presidente do Congo e a partir de então a Bélgica ou a proteger seu regime contra rebeliões. Mobutu imediatamente começou a prender os ex-ministros do governo do Congo. Como ele não gostava dos mercenários brancos em seu país, dizem por conta de um comentário adverso sobre sua competência militar, de dezembro de 1966 a julho de 1967 o novo líder congolês reduziu o número de mercenários de 650 para 189.

Jean Schramme mostrando no semblante os sinais do cansaço da luta no Congo.

O mercenário francês Bob Denard alertou a Schramme que Mobutu planejava dissolver a última das unidades mercenárias, o que deu o ímpeto a um plano de restauração de Moise Tshombe no poder. Esse plano foi batizado como “Kerille” e planejado para se iniciar em julho.

Mauríce Quintin – Fonte – SOF.

É dessa época que surge o maior problema na vida de Jean Schramme – O “Caso Quintin”. O heroísmo abstrato da luta, caro aos amantes da epopeia maniqueísta, não resiste, porém, a derrapagens individuais concretas. Porque Jean Schramme, durante esse período conturbado foi acusado de assassinato.

Seis semanas antes do início programado do Plano Kerille, um empresário da cidade belga de Tournai, chamado Mauríce Quintin, visitou Schramme em seu posto em uma localidade chamada Yumbi. Ele disse que havia sido enviado por Tshombe em Madrid, Espanha, onde estava exilado, com ordens para iniciar o ataque contra o governo e o exército congolês antes do previsto. Quintin indicou que a unidade de Schramme tomaria a cidade de Goma no início de junho, um mês antes do planejado. Schramme não confiava em Quintin, o vê como um agente provocador enviado pelo general Mobutu e afirmou que seu relato era “falso”. Daí houve uma violenta discussão no refeitório dos oficiais em Yumbi e Schramme dá um tiro no peito de Quintin com um rifle. Depois ordena que um de seus comandados, Rodrigues, ou Rodrigue Roger, ou ainda Roger Rodrigue (um barman mercenário), desse um golpe de misericórdia com sua pistola e jogasse o cadáver no rio Lowe, que era infestado de crocodilos. Tempos depois Schramme afirmaria que Quintin era um “espião” (Revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985, págs. 74 a 77). Episódio trágico, talvez de pouco peso no meio dos abusos cometidos nos estertores da descolonização, mas que, embora ainda estivesse longe de o suspeitar, perseguirá Schramme até ao fim da sua vida.

Tshombe morreu sem retornar ao Congo.

Em 30 de junho de 1967, quando Moise Tshombe retornava para o Congo do seu exílio na Espanha, o seu avião foi sequestrado – provavelmente por agentes da CIA e do serviço secreto francês – e seguiu para Argel, capital da Argélia, onde foi preso. Em 29 de junho de 1969, quase dois anos depois de sua captura, ele morreu em sua cela em circunstâncias suspeitas.

Para Schramme, a prisão de Tshombe foi um sinal de que algo deveria ser feito.

Mercenários em jipes, fazendo fogo com metralhadoras .50.

Na manhã de 3 de julho de 1967, o Commando 10 sob o comando de Schramme, junto com seus companheiros mercenários Bob Denard e Jerry Puren, lançaram ataques surpresa nas cidades de Stanleyville e Kindu.

Schramme liderou o ataque ao quartel do exército em Stanleyville, com uma força de onze mercenários brancos e cerca de 100 catangueses. O ataque matou centenas de soldados congoleses, levando os irados membros desse exército a executarem traiçoeiramente 31 mercenários que não estavam envolvidos na tentativa de golpe. O ataque que Schramme planejou foi descrito como “mal executado“, pois ele se comportou com excesso de confiança ao acreditar que sua pequena força seria suficiente para tomar Stanleyville. O certo é que os congoleses reagiram e, em uma semana, Schramme foi forçado a se retirar dessa cidade.

Coluna motorizada de mercenários.

Os mercenários então planejaram se mudar para o sul e se unir aos exilados de Katanga que estavam em Angola. Essas ações ficaram conhecidas como A Revolta dos Mercenários. Jack Malloch, um piloto rodesiano e traficante de armas, apoiou as forças de Schramme com voos transportando mantimentos, armas e munições.

Imagens reais de combates de mercenários no Congo .

Em 10 de agosto, suas tropas conquistaram a cidade fronteiriça de Bukavu e cresceram consideravelmente em número. Essa cidade era uma espécie de “Hollywood africana”, localizada à beira de um lago infinitamente azul. Casas suntuosas, cercadas por parques de estilo francês, serviram de acampamento para mercenários brancos e gendarmes catangueses. Caves cheias de vinhos, champanhe e uísque, armazéns cheios de provisões, quatro bancos com cofres bem cheios suprem as necessidades da mordomia. Talvez por isso Schramme conseguiu segurar Bukavu por sete semanas e derrotou todas as tropas do exército congolês enviadas para retomar a cidade.

Os militares congoleses sofreram com a falta de artilharia eficaz e estavam frustrados e desmotivados com suas perdas contínuas. Algumas das missões executadas por sua força aérea foram tão ineficazes, que acabaram atacando seus próprios homens em vez dos de Schramme. A escassez de munição foi um grande problema para o exército congolês, mas as forças de Schramme sofriam com uma escassez ainda maior de munição, pois o esperado apoio do exterior não chegou.

Mercenário ensinando táticas de combate.

Schramme então pediu que o presidente Mobutu entrasse em negociações com ele e exigiu que o regime democrático fosse restabelecido com Tshombe como parte do novo gabinete. Mobutu obviamente recusou, afirmando que não se sentaria e falaria com os “assassinos brancos“. Schramme, em troca, zombou e disse que “mostramos que o Exército Nacional Congolês é incapaz de nos derrotar” e ameaçou marchar sobre Kinshasa, a capital do Congo.

No mesmo período que Jean Schramme deixava a África, estourou na Nigéria conflito separatista da região de Biafra, onde vários mercenários europeus estiveram presentes. Na foto soldados biafrenses transpõem um riacho transportando op corpo de um mercenário abatido pelos nigerianos.

Por mais irável que fosse a posição de Schramme em Bukavu, ele não poderia resistir indefinidamente. Bob Denard, agora em Angola, reuniu uma força e tentou invadir o Congo para ajudar seus companheiros mercenários de armas, apenas para ser repelido por ataques aéreos. Mobutu então reuniu mais de 15.000 militares para eventualmente dominar o belga e o seu “Batalhão Leopardo”. Finalmente, em 5 de novembro de 1967, o exército congolês conseguiu derrotar Schramme, cujas tropas sobreviventes, 129 mercenários e 2.500 catangueses, atravessam a fronteira de Ruanda. 

Schramme e seus comandados entrando em Ruanda em novembro de 1967.

A Ditadura Militar Brasileira de Olho no Mercenário Belga

Schramme finalmente trocou a África pela Europa em 1968, foi quando escreveu um livro sobre suas experiências no Congo — Le Bataillon Leopard — e manteve-se compreensivelmente quieto. Mas logo foi preso na Bélgica pelo assassinato de Mauríce Quintin. Ele defendeu suas ações como as de uma conduta normal nas circunstâncias da guerra, citando que “Era meu dever impedi-lo de colocar seu plano em ação, então atirei nele e ordenei acabar com ele e despejar seu corpo no rio Lowa”.

Anos depois ele comentou que a Bélgica o libertou após 44 dias de confinamento, devolveu o seu aporte e o dossiê judicial onde constava seu caso foi classificado como ultra secreto. Com autorização do governo, Schramme deixou a Bélgica. Outras fontes informam que enquanto estava sob fiança e ainda aguardando sua sentença, Schramme decidiu sair do país em 1969. Já o governo belga, através do Ministério de Assuntos Exteriores, comunicou que ele havia deixado o país e “provavelmente estaria tentando voltar à África”.

Jean Schramme na Europa após seus dias na África.

Os belgas sabiam da capacidade de liderança de Schramme, seu poder de arregimentar homens, sua larga experiência em combate e disposição para luta. Para os belgas certamente seria uma baita fonte de dor de cabeça se Schramme abrisse uma nova frente de combate no Congo, que iria gerar problemas aos escorchantes e corruptos negócios com mineração que esses europeus mantinham na sua antiga colônia.

De toda maneira, ao sair do seu país natal, Schramme decidiu ir para Portugal, mas antes esteve em Madri, Espanha, onde deu uma entrevista à agência espanhola EFE e comentou sobre o seu futuro. Schramme se defendeu das acusações de assassinato de Quintin, afirmou que “não queria mais voltar a África” e informou que desejava “montar uma granja e viver no Brasil”. Não demorou e essa mesma entrevista foi reproduzida no jornal carioca O Globo (28/07/1969).

Só que um mês antes dessa publicação, os órgãos de informações e segurança da Ditadura Militar no Brasil já tinham ligado todas as antenas e abriram todos os olhos sobre a figura de Jean Schramme, conforme se pode ver no documento abaixo, produzido em 24 de junho de 1969 pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com informações readas pelo governo belga, que solicitaram às autoridades brasileiras informar se o antigo mercenário havia entrado no nosso país. Os militares daqui prontamente buscaram atender o pedido dos europeus.

Em um documento emitido em 27 de junho pela Quarta Zona Aérea da Força Aérea Brasileira (FAB), Schramme era enquadrado como um tendo uma pretensa periculosidade para “Subversão” e “Sabotagem/terrorismo”, além de haver um apontamento para “Assuntos especiais”, que em canto nenhum encontrei uma explicação sobre o que seria isso. O certo é que esse documento foi transferido para todas as unidades subordinadas à Quarta Zona Aérea e cópias foram enviadas ao Exército, Marinha e ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. No mesmo dia foi emitido pela Primeira Zona Aérea da FAB um documento considerado “Confidencial”, onde caso fosse confirmado a presença de Schramme no Brasil, as autoridades deveriam “prendê-lo incomunicável”.

Realmente as forças de segurança brasileiras estavam com muita vontade de colocar as mãos no belga. Mas qual o interesse do nosso governo em Schramme?

Fica difícil pensar que os milicos e os burocratas do governo brasileiro imaginavam que esse calejado combatente iria negociar seus “serviços profissionais” com os militantes de esquerda que buscavam “lutar contra o Regime Militar” através da luta armada e implantar a “Ditadura do Proletariado”.

A capacidade de liderança e experiência de combate de Jean Schramme alertou o governo e os militares brasileiros.

Acredito que o governo brasileiro buscava prender Schramme para utilizá-lo como peça de propaganda e mostrar ao mundo que eles tinham feito “algo de bom” ao capturar o “malvado mercenário que tanto fez sofrer os congoleses e matou um compatriota”. Era o tipo de notícia que na Europa faria um ótimo contraponto às várias manchetes de torturas e desaparecimentos dos opositores do brutal regime militar brasileiro.

Só que essa estratégia, se é que ela existiu, não funcionou, pois o antigo mercenário sumiu. Eu não sei como, mas no período mais terrível da Ditadura Militar, o belga Jean Schramme conseguiu entrar no Brasil e desaparecer das vistas dos agentes consulares do seu país e dos “secretas” da FAB, do Exército, da Marinha e da Polícia Federal.

Viver em Paz

Ninguém acreditou em Schramme, mas desde o começo ele falou a verdade – Não queria voltar à África, queria viver no Brasil e montar uma granja – E assim ele fez!

Avenida em Rondonópolis – Fonte – primeirahora.com

Segundo documentos existentes no Ministério da Justiça, Jean Schramme foi para a cidade de Rondonópolis, no estado do Mato Grosso, a 212 km da capital Cuiabá. No começo da década de 1970, cerca de 63.000 pessoas moravam em Rondonópolis, que cada vez mais se consolidava como uma das principais fronteiras agrícolas do Brasil, onde não faltava espaço para quem desejasse trabalhar e desenvolver algum negócio nessa área. 

Rondonópolis na época em que Schramme chegou na região – Fonte – primeirahora.com

Consta que Schramme trabalhou como técnico em agronomia em uma fazenda chamada Três Irmãos, localizada no Km 30 da rodovia que liga Rondonópolis a Campo Grande e cujos proprietários eram conhecidos como “Irmãos Araújo”. Havia também a informação que o belga era proprietário da “Imobiliária Rondonópolis”, localizado na Avenida Fernando Corrêa da Costa e possuía em sociedade uma propriedade rural denominada “São Paulo”, no município de Itiquira, próximo a Rondonópolis, onde trabalhava com o cultivo de arroz e criava gado. Segundo jornais de Cuiabá (Jornal do Dia, 24/10/1984, pág. 8 e 25/10/1984, pág. 3), Schramme e foi um dos sócios fundadores da Associação dos Produtores Rurais do Sul de Mato Grosso (APRUSMAT). Descobri que o antigo combatente  havia adquirido no Loteamento  Chácara Beira Rio, na rua Quatro, uma  chácara a qual deu o nome de “Repouso do Leopardo”. Comentaram também que “se não fosse pelo seu sotaque” ninguém pensaria que aquele morador de Rondonópolis era belga e ele “nunca ocultou sua condição de ex-oficial”. 

Outra notícia interessante era que Schramme havia começado um relacionamento com uma jovem mato-grossense da cidade de Tesouro, que tinha 18 anos em 1974, se chamava Edith da Silva Pinheiro e dessa união nasceram três filhos. Edith era filha de Abner Araújo, um dos donos da propriedade Três Irmãos. 

Paisagem normal no Mato Grosso nos primeiros anos da década de 1970.

Trabalhando no que gostava, tendo uma companheira, filhos, vivendo em uma terra produtiva, boa e acima de tudo em paz, Jean Schramme talvez tenha pensado que o mundo e o Sistema teriam esquecido dele. Mas o Sistema, seja lá onde e como atua, jamais esquece de alguém que abalou as suas estruturas e lhe gerou problemas. Em finais de 1974, ou no ano seguinte, o Sistema voltou a focar em Jean Schramme. 

A coisa toda aparentemente começou com uma plantação de arroz que o belga implantou na cidade de Pedro Juan Caballero, no vizinho Paraguai, que fazia fronteira com o Mato Grosso antes da divisão territorial de 1977. Em uma ocasião, Schramme foi à embaixada do seu país em Asunción, capital paraguaia, para regularizar seu aporte. Se saiu de lá com o aporte novo eu não sei, mas documentos do Ministério da Justiça mostram que o nosso Ministério das Relações Exteriores recebeu dos belgas a informação que o antigo mercenário continuava por aqui. 

Para o Reino da Bélgica, ao menos naquele momento, seu famoso súdito não estava lhe causando problemas e nem eles nada pediram aos brasileiros. Mas para o governo brasileiro a informação era importante, pois a situação diplomática na África era especial. 

Nessa época, a presença de um antigo mercenário europeu que lutou no Congo e enfrentou o ditador Mobutu poderia ser um gerador de problemas. Em termos de política externa o governo do general Ernesto Geisel, que governou o Brasil de 1974 a 1979, procurou ampliar a presença do nosso país na África através do trabalho do Ministro das relações Exteriores Antônio Francisco Azeredo da Silveira Geisel, que desenvolveu com sucesso uma orientação denominada “Pragmatismo responsável“. O governo brasileiro mostrou então uma postura favorável em relação à descolonização na África, onde reconheceu a independência de Guiné-Bissau, de Angola e de Moçambique, além de apoiar o ingresso dessas ex-colônias portuguesas na ONU e abrir embaixadas em várias ex-colônias europeias na África.

Documento do Ministério da Justiça de 1981 que mostra a situação de Schramme no Brasil.

Certamente os barnabés do Ministério das Relações Exteriores pensaram que não ficava muito bem que os países africanos soubessem que o mítico Jean “Black Jack” Schramme vivia tranquilamente no interior do Brasil. O problema para esses funcionários públicos era que o belga havia casado com uma brasileira, tinha três filhos para sustentar, negócios legais no país, não havia praticado nenhum crime em nosso território e, diante dessas situações, a lei impedia sua deportação. Mesmo assim, conforme é possível ver no memorando abaixo, o pessoal do Ministério das Relações Exteriores queria mesmo era ver Schramme bem longe do Brasil. 

O Sistema Não Esquece 

O tempo foi ando e Schramme continuou no Brasil. Mas, como escrevi anteriormente, o tal do Sistema não esquece jamais e mais uma vez ele veio atrás de Jean Schramme. 

No ano de 1984 o Brasil se encaminha para a normalidade democrática, mas em uma quarta-feira, 17 de outubro de 1984, um grupo de policiais invadiu a casa de Schramme e o levou preso para a sede do Departamento da Polícia Federal, em Brasília. Notícias da época informaram que a prisão foi tão abrupta, que o belga nem pode “se preparar para acompanhar os agentes”. 

A princípio os jornais noticiaram que o ditador Mobutu Sese Seko, que por essa época tinha mudado o nome do seu país para Zaire, era quem estava pedindo a extradição de Schramme. Mas os federais explicaram que estavam cumprindo determinações de Ibrahim Abi-Ackel, então Ministro da Justiça, e a bronca tinha relação com o “Caso Quintin”, onde seu país natal pedia sua extradição para realização de um julgamento.

Somente quase dois meses depois, em 12 de dezembro, Jean Schramme foi interrogado pelo Ministro Aldir Guimarães arinho, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a sua situação. Segundo o Jornal do Brasil (1° Caderno, pág. 12, 13/12/1984), Schramme confessou abertamente que matou Quintin, mas disse que o fato se deu para “evitar riscos” para si e sua tropa. Com base no seu depoimento o Procurador-Geral da República Inocêncio Mártires Coelho, iria dar um parecer sobre a permanência, ou não, do belga no Brasil. Então o Ministro Aldir arinho realizaria uma análise sobre o caso. Mas veio o recesso de fim de ano do STF e o caso do belga ficou para ser finalizado em fevereiro de 1985. Enquanto isso, o antigo mercenário iria aguardar a decisão em uma cela do Departamento da Polícia Federal. 

Capa da revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985, onde foi publicada a entrevista de Schramme quando estava detido na Polícia Federal em Brasília.

Desde que ficou preso em Brasília, Schramme recusou pedidos para falar com a Associated Press (AP) e a United Press International (UPI), mas deu uma entrevista para a revista americana Soldier of Fortune, ou SOF. Fundada em 1975 por um antigo boina verde que serviu na Guerra do Vietnã, essa revista alcançou muito sucesso editorial como um informativo dedicado a reportagens sobre conflitos em todo o mundo e sobre para trabalhos mercenários, além de divulgação de materiais bélicos. 

Fumando muito Schramme comentou ao jornalista muito sobre seu período no Congo e as crises ocorridas naquele país. Ao ser perguntado se odiava a Bélgica, ele disse “não”, mas acrescentou: “Eu odeio os ministros belgas que jogaram um repugnante papel duplo com o antigo Congo Belga. E eu odeio alguns belgas magistrados da corte que após todos esses longos anos ainda querem a minha cabeça…” 

Foto de Jean Schramme publicada na revista Soldier of Fortune, edição de agosto de 1985.

Schramme continuou afirmando que não fez nada errado em relação à morte de Mauríce Quintin – “O que eu fiz foi certo. E eu estava mesmo totalmente autorizado a fazê-lo. Mobutu havia me dado poderes absolutos. E eu estava, naquele momento em particular, oficialmente como um coronel ativo no regular Armée Nationale Congolaise.” E continuou – “Minha libertação da prisão na Bélgica e a devolução do meu aporte era uma espécie de compromisso entre o Ministério Belga do Exterior e eu. Me foi dada permissão para sair do país depois que prometi manter minha boca fechada sobre os negócios do Congo. Muitas pessoas de alto escalão em Bruxelas sabiam muito bem quantos documentos incriminatórios eu tinha em minha posse sobre o papel secreto da Bélgica nas crises do Congo”.

No final da entrevista comentou “Sim, sinto muita falta da minha esposa e dos meus filhos. Mas não me arrependo”. 

No dia 29 de maio de 1985 o Supremo Tribunal Federal negou por unanimidade a extradição de Jean Schramme. O Ministro Aldir arinho, relator do caso, sustentou a incompetência do governo belga para requerer a extradição, alegando que o delito foi praticado no Congo. 

Schramme deixou sua cela no Departamento da Polícia Federal, depois de sete longos meses de cadeia, e voltou para sua esposa e filhos em Rondonópolis.

Enquanto o belga vivia tranquilo no Brasil, no dia 17 de abril de 1986 um tribunal na sua terra natal condenou-o à revelia a vinte anos de trabalhos forçados. Todos os pedidos de extradição foram recusados ​​pelas autoridades brasileiras. Afinal, Schramme adquiriu dupla nacionalidade por meio de seu casamento com uma brasileira e o Brasil não extradita seus nacionais. Dois anos depois, em 14 de dezembro de 1988, Jean Schramme morreu de forma totalmente inesperada, aos 59 anos, em sua fazenda em Rondonópolis. 

A última notícia que consegui sobre a vida do antigo mercenário em Rondonópolis foi que o vereador Orivaldo Alves Moreira, conhecido como Kaza Grande, propôs em 21 de março de 2023 a alteração da rua Quatro da Chácara Beira Rio para “Rua Coronel Jean Schramme”.